Erotismo ou pornografia. A fronteira
- Sopro Cultural
- 8 de abr. de 2018
- 10 min de leitura
Atualizado: 13 de abr. de 2018
O artista plástico cubano, Omar Camilo, faz uma viagem entre o seu trabalho e a arte
erótica, numa entrevista com o Sopro Cultural.

"A Arte é o plano B da realidade". Foi com esta afimação que o artista plástico e
escritor cubano, Omar Camilo, deu o pontapé de saída na entrevista com o Sopro Cultural
Omar Camilo, residente há muitos anos na cidade da Praia, recebe o Sopro em sua casa que, ao mesmo tempo, transforma-se em sua própria galeria. As cores são fortes: amarelo, azul, vermelho, preto, incendeiam a casa denunciado até aos mais distraídos, a profissão do nosso entrevistado.
Nada convencional, a cozinha foi o canto da casa que escolhemos para nossa "conversa". Na parede, a visão da sétima arte. Posters de filmes como "Pulp Fiction", de Quentin Tarantino, ou o vencedor do Palme d'or do Festival de Cannes, "4 Mois, 3 Semaines et 2 Jours", entre vários outros alusivos a grandes sucessos da indústria cinematográfica, desempenham o seu papel decorativo ao lado da clássica claquete. Da varanda, vê-se o mar de Kebra Kanela.
Em um canto superior, as fotografias molduradas de Omar com Gilberto Gil e Gal Costa.
Em outros, quadros e mais quadros da autoria do próprio artista.
Com o olfato aguçado pelo "pudim cubano" em banho-maria e a entrevista embalada pelo soprano de Maria Callas, Omar Camilo fala-nos sobre o seu trabalho enquanto artista plástico e a sua visão enquanto ser-humano, centralizando num tema ainda polémico: o erotismo.
Nasceu em Havana (Cuba), uma sociedade que o Omar considera como sendo uma sociedade com uma carga erótica "intensa". Como este aspeto influenciou no seu trabalho enquanto artista e como vê o próprio erotismo?
O ser humano é muito mais filho do seu tempo e de sua geografia do que os seus próprios pais. Nós somos aquilo que vemos, escutamos e sentimos. Somos aquilo que nos é permeado constantemente. Não significa que todas as pessoas façam a mesma digestão, a mesma leitura da mesma realidade.
Há uma frase, não minha, mas é real: "o meio não determina mas influencia muito". E
influencia muito mesmo. Eu acho que o latino, pelo menos o latino-americano, é de uma cultura tão erótica como afetiva. Eu acho que o erotismo é resultado, consequência. Uma pessoa meiga, sensível, que sabe tocar, falar, olhar acaba por ser uma pessoa erótica.
E todas as coisas realmente autênticas não são feitas para agradar, porque acontecem de forma natural, de forma espontânea. Mas, atenção, não existe uma fórmula universal, sempre digo isso. Pode ser que algo não seja erótico, atrativo para mim e seja para ti, para outra pessoa. Mas esta é a minha leitura pessoal. Pode ser que eu ache completamente "cafona", desproporcional e de mal gosto uma performance, sobretudo muito comum nesta zona do planeta, e outra pessoa adore.
Então acredita que o erotismo não pode ser "apreendido"?
Eu acho que o erotismo é uma capacidade humana de sofisticar a dinâmica do
acasalamento. Tu transmites em uma determinada frequência. Só que a diferença entre a pornografia e o erotismo é que um está mal feito, é grotesco, básico, e o outro é o extremo oposto. O erotismo é uma performance consciente? Que é visto como uma "performance" e não como uma capacidade? ... A forma como uma mulher cruza as pernas, a forma como ela acaricia o seu próprio pescoço ou simplesmente arruma o cabelo, muitas vezes isso é inconsciente. São performances apreendidas pelos séculos, através de filmes, video clip, romances de televisão, etc etc, e que mudam de uma cultura para outra. São códigos que os outros veem em nós, a forma como somos lidos pelos outros.
O que diferencia o erotismo da pornografia?
A fronteira. Esta varia de uma cultura e de uma época para outra. Por exemplo, uma obra que pode ser simplesmente arte e tranquilamente arte em Barcelona, Paris, aqui pode ser interpretada como pornográfica. Estou a falar da mesma obra. Isso muda de uma cultura para outra, de uma época para outra.
Realmente, na maioria da vezes, aquilo que é pornográfico é aquilo que não tem nem pé nem cabeça, aquilo é o físico pelo físico, o animal pelo animal. Podemos estar a falar
de uma obra erótica muita intensa e muito forte para uns e que seja pornográfica para
outros, ainda que tenha um resquício de beleza, de estética. E ali estão eles [erotismo
e pornografia] quase juntos. E o que vai fazer saltar de um lado e do outro desta
fronteira é quem a assimila, quem a observa; quais as suas experiências e os seus
referentes. Eu já vi tantas exposições e tantos livros eróticos que, sinceramente, já
perdi a fronteira entre o pornográfico e o erótico como intensidade e força.
Simplesmente, o que separa o pornográfico do erótico é o argumento. Tu podes ver um
pénis a entrar numa vagina, a tocar na vagina e isso pode ser tanto erótico como
pornográfico. E mesmo assim isso depende. Depende do argumento, do ponto de vista, da composição e beleza da imagem, da forma como se narra essa mesma história. Nesse caso o que interessa não é o "o quê", mas o "como".
Uma imagem forte de uma história erótica, sexual vista numa galeria de arte, com uma
moldura especifica, com uma iluminação especifica, é uma obra de arte; vista em uma
revista numa esquina de um bar, pode ser pornográfica. São tantos elementos que estão intrínsecos e extrínsecos. Nem tudo depende do assunto em si, mas também na prática depende da circunstância, do contexto e do espectador, que é aquilo que completa. E isto é válido para todas as obras de arte. Uma obra de arte é só a metade. A outra metade é o espectador. Uma obra de arte que ninguém vê, é como se não existe porque não comunica a ninguém, não é consumida.
Essa seria um pouco a diferença entre o erótico e o pornográfico. Se tivermos que
estabelecer alguma diferença estaria no argumento, na contextualização ou na
descontextualização e na procura pela beleza. Não interessa o quão intensa seja uma
imagem de uma obra de arte na sua componente e no exercício da história que conta. Se busca pela beleza, pela poética, pela composição, pela luz, pela harmonia, para mim
nunca vai ser pornográfico.
Eu tenho um problema particular que é: não gosto de ver homens a fazer sexo. Não é
preconceito. Simplesmente não gosto porque produz em mim uma sensação desagradável. Mas, não posso dizer que só porque não gosto quer dizer que seja pornográfico; porque existem belíssimas obras de arte de homossexualismo masculino que são verdadeiras expressões artísticas além da história que contam. Aliás, quase todas as obras de arte romanas da época de Da Vinci e Michelangelo, têm um componente muito forte de homossexualismo, e essas obras são de uma beleza inquestionável [...].
Cada época, cada cultura estabelece suas próprias fronteiras [...] Se há um acordo, um
consenso general e há um um consumo tranquilo de uma obra do tipo, qual o problema? Pode colocar o nome que quiser: erótico ou pornográfico. Há uma proposta estética bem estruturada, então é arte erótica; se é uma coisa bruta, feia, para mim é pornografia. Posso ver uma mulher com aqueles shorts microscópicos com uma intenção de se "vender" grotescamente , e vê-lo como algo pornográfico; e posso ver uma mulher completamente nua, e não achar nada pornográfico e sim, algo belo. Portanto, a diferença entre o pornográfico e o erótico não estaria determinada pela exposição e pela nudez do corpo, mas, sim, pela intenção.
Atenção! As imagens que se seguem podem ferir a sensibilidade de alguns leitores.
Todos os direitos reservados. Fotos: Omar Camilo.
Estudou no Instituto Superior de Arte em Cuba e teve a oportunidade de estar e conviver com grandes crânios da arte...
...Muito antes de estudar ali. Comecei a estudar naquele instituto com trinta anos. Mas
estudo arte desde os 13 anos, convivo com artistas desde a adolescência.
Conviver com essas pessoas, o que trouxe para si?
Liberdade. Amplitude.
A mulher é o centro do seu trabalho artístico.
Não, não é o centro. O centro do meu trabalho é o ser humano. A mulher é o centro da
minha motivação, como individuo, como homem. Como artista e como ser espiritualista, é o ser humano. Há situações, assuntos humanos que me interessam tanto como pode me interessar e me provocar, seduzir o gemido de uma mulher. Eu não conduzo a minha cabeça, o meu horizonte a uma vagina, ou a uns lábios. A coisas têm a importância que têm, o espaço que têm e o momento que têm. Não estou todo o tempo a pensar em mulher, nem em sexo, nem em erotismo e nem em sedução; nem estou a todo tempo a pensar na paz do mundo, nem na fome ou guerra. Sou um individuo com a capacidade humana de ser e estar conforme seja o assunto, até porque a mente humana é feita de muitas peças, e não uma só. As coisas têm a importância que têm, seja o que for.
Fala muito de como as pessoas veem as "proporções", os atributos físicos da mulher, aquilo que é erótico ou não, as referências. Porquê?
Primeiro, as referências são culturizadas e se coincidem com as épocas. Houve uma época que as mulheres gordas, cheias de celulite eram um elemento de fascínio e erotismo de uma determinada classe e de uma determinada zona do planeta. O problema é que os brancos inventaram a imprensa, reproduziram seus critérios, seus conceitos e suas ideias em uma grande quantidade nos livros; portanto, foram as primeiras referências mais universais que tivemos. Os brancos tinham um maior poder de comunicação e imposição de sua cultura. Mas, também numa tribo africana, ou no meio de uma tribo na Amazónia, aquela senhora gorda podia não dizer nada, não despertar qualquer tipo de interesse.
E o tabu das genitálias? Acredita que o mundo moderno é o culpado por este tabu?
Este mundo moderno não é muito diferente do resto dos mundos. O que criou o tabu das genitálias foi que, alguma religião percebeu que assim que sacasse o espírito, a força, essa motivação das pessoas, os conseguiam dominar. E depois enfiaram na cabeça o crime, o castigo, a culpa e o pecado. As pessoas ficaram em função daquilo que eles queriam e como queriam. Eles ficavam com o "poder" de perdoar e escravizar de acordo com os seus interesses. Que alguém me convença do contrário. A mim ninguém pode me dizer como me sinto e como me devo sentir [...]
É um apreciador do erotismo oriental.
Sou um apreciador da arte oriental em geral. O erótico passa por aí. As coisas têm a
importância que têm. As coisas se encaixam dentro do seu espaço e não fora dele. O
erotismo passa por aí. Mas é a filosofia oriental que eu aprecio. Por exemplo: a
relação que o indiano tem com o sexo não é uma relação física, mas uma relação
espiritual, filosófica que desenvolveu muito mais que a maioria das outras culturas no
que diz respeito ao conhecimento do corpo, das zonas, das posições, dos resultados.
Mas eu não acho que no inicio foi com uma intenção sexual, mas sim espiritual. Ficou muito mais atrás porque a forma de pensamento dominante é a do mundo ocidental da igreja católica que foi uma igreja completamente hipócrita com uma dupla moral com respeito à sexualidade, com a própria existência do ser humano. Como barrar uma forma de expressão tão intrínseca, tão natural do ser humano como a sua própria sexualidade? Essa é uma forma de extrair a motivação, a alma das pessoas [...]
Então é importante desmitificarmos a ideia de que o erotismo está totalmente ligado ao sexo?
O erótico, no meu ponto de vista, não está totalmente ligado ao sexo. O erótico como
muitos atos quotidianos consciente ou inconscientemente do individuo, não unicamente uma mera intenção de acasalamento, uma mera intenção de chamar a atenção, de ser admirado por outra pessoa na qual podemos ter interesses eróticos, sentimentais imediatos.
Primeiro temos que definir o que é a sexualidade tanto prática, consciente e
intelectual do ser humano. Quando acordas pela manhã e escolhes a roupa, o perfume, o par de sapatos, a carteira, o cinto, para sair, estás a começar a sua performance, essa
dinâmica. Somos filhos da nossa cultura; uns mais que outros. Somos filhos de uma
performance que está em alguns casos — de pessoas mais conscientes — mais definido por necessidades e expectativas reais e, em outros casos — que é a maioria — está definida por uma manipulação [...] Uma coisa é o erotismo e outra é o sexo.
Façamos agora uma brevíssima passagem para o contexto cabo-verdiano. Abraçou Cabo Verde como a sua pátria e o arquipélago ainda detém um mercado artístico limitado. Porquê Cabo Verde?
Não foi eu quem abraçou Cabo Verde. Foi Cabo Verde que me abraçou. Estava em Cuba
quando uma delegação cabo-verdiana foi lá, e pediam na agenda um assessor de
comunicação. Vim para Cabo Verde, apaixonei-me por este país e por uma crioula.
Regressei para Cuba e voltei pouco tempo depois.
Mas a escolha, tem várias respostas. Primeiro porque eu gosto da simplicidade que ainda há em Cabo Verde; gosto muito da imediatez que ainda há aqui; gosto da liberdade de expressão. Adoro a minha história erótica e emocional com as crioulas. Acho que a performance humana, emocional e sexual da mulher cabo-verdiana combina muito comigo. Sei que serei condenado pelas cubanas por aquilo que já falei, mas é um facto (risos). Aqui em Cabo Verde tem pouca coisa que me faça sair do meu espaço, da minha zona de conforto, de equilíbrio e produção. Moro aqui como se morasse num templo budista; a trabalhar. E realmente, na vida, quando queremos alcançar algo realmente intenso, forte e fundo, temos que trabalhar como escravos [...]
Quando viajo para outros países, outras cidades eu não trabalho. Saio, passeio, vou a
museus, a galerias; não produzo nada mesmo que tenha os melhores materiais; me distraio muito. Eu vivo aqui [Cabo Verde] recluso no meu "templo" a trabalhar, e sou consciente disso. E as próprias coisas negativas que tem Cabo Verde no que diz respeito à minha profissão eu as uso a meu favor. Reprima um artista, e ele vai ser mais intenso; tenta comprar a alma dum artista, e o vais matar.
[...] aqui dificilmente um artista é capaz de olhar para obra de um outro artista e
reconhecer publicamente. Isso é uma miséria, uma pobreza e tanto. Eu não tenho nenhum problema de bater palmas e emocionar-me perante uma obra dum outro artista. Se a obra é boa, é boa e bato palmas. Mas isso é uma forma que, não sei se é africana ou especificamente cabo-verdiana, que em vez de estarem unidos ficam divididos. As pessoas dão-se por si a tentar "abafar" o outro. E isso é um grande erro. Há coisas que eu nem sequer considero arte, considero expressões culturais, decorativas, expressões bonitas.
Comments